Repensar o sentido do morar e os rituais que estes espaços abrigam, além de todas as atividades incorporadas em razão da pandemia e o profundo e acelerado processo de hibridização entre o físico e o digital, nunca foi tão urgente e complexo.
O distanciamento social nos fez olhar para dentro de nossas casas e, sobretudo, para dentro de nós mesmos.
As pessoas estão repensando onde moram: pessoas sozinhas e famílias inteiras migrando das capitais para cidades menores em busca de mais espaço, qualidade de vida e contato com a natureza.
Muitas destas mudanças emergem como parte de um processo de desaceleração de vida e revisão de valores.
As pessoas também estão repensando com quem elas moram: vimos alterações importantes nos números de divórcios, uniões estáveis, mulheres grávidas e filhos que voltaram a morar com pais idosos durante os primeiros meses da Covid-19.
E, mais importante do que a região ou com quem moram, é o fato de que as pessoas estão repensando como moram: os sinais deste processo são evidenciados pelo forte aquecimento do mercado imobiliário e da construção civil em todo o país.
Distanciamento social transformou a concepção do morar
Isto evidencia que os imóveis residenciais não estavam preparados para seus moradores. Obrigados a permanecerem muitas horas em casa, eles perceberam que não correspondiam às suas necessidades e estilos de vida.
O modelo tripartido em área social, íntima e de serviço, comum na maioria dos imóveis residenciais brasileiros e originado na burguesia parisiense da segunda metade do século XIX, já não era mais uma resposta às pessoas que nos tornamos e à forma como vivemos nas últimas décadas.
Dentre tantas atividades e rituais desenvolvidos no lar, acresceram-se inúmeras situações de uso atribuídas à pandemia, tais como trabalho, escola, academia, restaurante etc.
Além disso, ganhou força e relevância uma nova camada, imaterial e intangível, na qual fomos abrupta e violentamente imersos: o mundo digital. A esfera virtual colaborou para o esgarçamento de conceitos estabelecidos e enrijecidos por séculos no desenho da habitação contemporânea.
Se nossas relações com as pessoas se modificaram radicalmente, a consciência de coletividade, as formas de trabalho, lazer e consumo também foram fortemente afetadas.
Repensar como os espaços domésticos e nossas cidades têm sido concebidos é imprescindível e inadiável.
É hora de rejeitarmos os padrões e modelos que nos trouxeram até aqui
A pandemia, desconsiderando as irreparáveis perdas humanas, o aumento da população que vive abaixo da linha de pobreza e o agravamento da desigualdade social, revelou que há outras formas de seguirmos.
Há distintas maneiras de vivermos a cidade e convivermos, de trabalharmos e nos divertirmos e, sobretudo, variadas formas de morar.
A complexidade e a pluralidade que a contemporaneidade nos apresenta tem oferecido inúmeros caminhos possíveis para a realização pessoal e propósito de vida.
Um importante filósofo suíço, Alain de Botton, em seu livro A Arquitetura da Felicidade, discute a maneira como os espaços nos afetam e como essa experiência está fundamentalmente atrelada à nossa visão de mundo: “há tantas formas de beleza quanto formas de felicidade”.
Ressignificação do morar
Num momento em que muitas pessoas estão repensando suas vidas, é premente a revisão dos processos projetuais para uma ressignificação do morar.
Considerando que as transformações tem sido cada vez mais numerosas e velozes em nossas vidas, abordagem colaborativa, empática e aberta às subjetividades torna-se essencial para que as repostas não sejam obsoletas e repetitivas.
E que, portanto, seja possível expressar imaterialidades e atmosferas, redes e inter-relações, sem formalismos e determinantes restritivos de modelos e tipologias.
Dentre tantas possibilidades, destacarei algumas que tem se pronunciado vigorosamente: restauração e revivalismo de estilos e soluções de outros momentos históricos, num movimento típico de romantização de eras passadas quando tempos incertos, voláteis e ambíguos são vivenciados.
Isto se dá no campo da arquitetura e do design de interiores por meio da revalorização do vernacular, do ancestral, do artesanal e retoma movimentos importantes como Arts and Crafts.
Distanciamento social aumentou a preocupação com o bem-estar
Outro relevante sinal emerge da crescente conscientização e forte preocupação com o bem estar mental, emocional, espiritual e físico na proposição de espaços mais fluidos, bem iluminados, ventilados e equipados para a prática de exercícios físicos, atenção plena, ioga e meditação.
Restabelece-se, no âmbito doméstico, um local dedicado à espiritualidade por meio de altares, oratórios, imagens e quaisquer outros símbolos que possam remeter às crenças e valores das pessoas que moram na casa ou que já pertenceram àquele grupo. Estes artefatos passam a tomar as paredes e estantes de forma expressiva e decorativa.
A imersão num mundo artificial e a falta de contato com a natureza e com a própria essência humana revigoraram a necessidade de reconexão com plantas e elementos naturais, linhas sinuosas, luz e ventilação naturais.
Texturas, cores, formas e padrões orgânicos, materiais e elementos naturais, além de vasos, hortas e novas tipologias de móveis que incorporam espécies vegetais contribuem para o bem estar e equilíbrio das pessoas. Acionam ou potencializam a sensação de que estamos novamente integrados a um grande ecossistema do qual fazemos parte.
Graças à crise, fomos capazes de perceber como a lógica predominante não consistia numa resposta adequada a quem nos tornamos. As pessoas estão adoecendo mais, sofrendo com ansiedade e depressão e inúmeros transtornos, tais como alimentares e de sono.
A pandemia nos oportunizou um olhar mais sensível e uma visão ecocêntrica de nossas escolhas e atitudes e nos obriga a questionar que normalidade era essa.
O que o Design tem a ver com distanciamento social?
Como o Design pode transformar a espacialidade doméstica contemporânea, redesenhar novas geografias simbólicas e propor o conceito de lar que faça sentido em meio a tantas transformações e ao hibridismo que emergiu tão intensamente em nossas vidas?
Se Design, etimologicamente, significa desígnio, desejo, intenção, talvez só o Design seja capaz de nos fazer refletir e propor como desejamos morar e, sobretudo, como intencionamos viver?
Graziela Nivoloni é arquiteta e urbanista, co-coordenadora da Pós-graduação em Design de Interiores Contemporâneo e docente do bacharelado em Design de Produto e Serviço no IED, coordenadora dos cursos de extensão Casa Vogue+IED
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